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O GASTRÓPODE - O ESPECTRO DA MENTIRA NA PRESENTAÇÃO E REPRESENTAÇÃO NO DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO: PERSPECTIVISMOS JURÍDICO, FILOSÓFICO E DEONTOLÓGICO

Autor: Geovane de Assis Batista
Páginas: 364 pgs.
Ano da Publicação: 2022
Editora: Instituto Memória
De: R$ 200,00 - por: R$ 150,00

SINOPSE

APRESENTAÇÃO

 

Filosofia e Ciência não se confundem: às vezes se conectam, às vezes não; noutras, até mesmo se opõem. Porém, a atitude filosófica — a resposta de Sócrates ao Oráculo quando admitiu sua ignorância sobre as coisas — está indissoluvelmente vinculada à construção do saber científico. Só sei que nada sei configura um marco, um divisor de águas na história do pensamento humano.

Naquele momento, nossos antepassados começam a romper com a visão mitológica que obsta o conhecimento da physis, termo ordinariamente traduzido por natureza, mas, num sentido mais amplo, como a própria realidade, e, em meio às fantasias da mitologia grega, surge algo absolutamente novo.

Para o pensamento antigo, tudo estava previamente dado e explicado. As grandes questões acerca do universo e do homem, suas causas, leis e fins pertenciam à órbita da cosmogonia particular de cada cultura e a ninguém cabia problematizá-las.

O Mito, o nada que é tudo de que nos fala Fernando Pessoa em Ulisses, absorvia de tal modo a alma humana que pensar o mundo fora da mitologia, escapar da caverna, na alegoria platônica, não parecia um empreendimento possível nem desejável. A certeza e a segurança, que a mitologia proporcionava, eram suficientes e bastavam ao homem da civilização clássica.

Com os primeiros filósofos, o mundo do mito cede passo à razão (logos). Nasce o pensamento filosófico ocidental e com ele germina a possibilidade de um pensar científico. A Ciência, tal qual a concebemos hoje, ainda retardaria séculos sua estreia no espetáculo da História.

Mas se um dia o espírito humano, ao dominar o conhecimento, veio a fazer o antes inimaginável (seja a quebra do átomo — o não-divisível, na etimologia grega —  por meio da fissão nuclear, seja fotografar Icarus, a longínqua estrela situada a 9 bilhões de anos-luz da Terra), o que se pode dizer é que dificilmente isso seria possível se um dia o homem mais sábio de seu tempo não admitisse sua ignorância e, humildemente, não se dispusesse a aprender e a usar a razão para rasgar o véu que o separava da realidade. Com o logos, abriu-se a senda para o conhecimento do universo.

Contudo, no mundo contemporâneo, em que parece não se vislumbrar limites à investigação científica, não é raro que se presencie atitudes de desprezo ou, quando menos, de desinteresse para com a Filosofia, como se se tratasse de uma ferramenta que, muito útil no passado, pudesse ser agora descartada ou deixada guardada no porão do edifício que, sem sua participação primordial, não teria sido construído. Muitos não se dão conta de que a Ciência sem a Filosofia é manca. Não irá longe; ou pior: poderá levar a própria civilização ao seu fim.

Pouco mais de dois mil anos de acúmulo científico (isto se generosamente considerarmos Ciência os parcos saberes acumulados sobre a natureza antes da Idade Moderna, quando, então, se deu a Revolução Científica), converteu o homo sapiens, segundo nos afirma Yuval Harari, num “deus, pronto para adquirir não só a juventude eterna como também as capacidades divinas de criação e destruição”.

Recordo aqui o paradoxo de Fermi, esse estranhamento de físicos e astrônomos sobre a ausência de evidências de vida inteligente fora de nosso planeta, não obstante as altas probabilidades de civilizações extraterrestres, algumas, possivelmente, milhões de anos mais antigas que a nossa. Carl Sagan desenvolveu uma hipótese sobre tal antagonismo: as civilizações inteligentes tenderiam à autodestruição antes de desenvolverem potencial para colonizar as galáxias. Talvez porque a evolução ética e a capacidade de convivência harmoniosa entre os membros de sua própria sociedade e desta com seu ecossistema não tenha acompanhado o avanço do poder autodestrutivo decorrente do progresso científico.

De fato, olhando para nosso pequenino planeta, vê-se que quinhentos anos de Revolução Científica já proporcionaram ao ser humano a capacidade de destruir com armas ou com a queima de combustível fóssil seu próprio habitat. Sem a ética — ramo da Filosofia que estuda os princípios que motivam e orientam o comportamento humano, guiando sua praxis para o bem, e sem a razão, capacidade de pensar dedutivamente e se conduzir de modo lógico — o conhecimento científico pode tornar-se um perigoso atalho para um mundo distópico ou para o fim de nossa espécie.

Embora situado no campo das Humanidades, o Direito, como todas as ciências, é também devedor da Filosofia e, não obstante autônomo, não deve abrir mão da iluminação proporcionada pelo saber filosófico.

Sob o olhar do historiador, o elo entre os dois campos da cultura revela-se tão antigo quanto o próprio pensamento filosófico ocidental. A polis grega que se estabeleceu entre os séculos VIII e V a.C. era um modelo de sociedade regido por leis elaboradas pelos próprios cidadãos, conquanto excluídos desse conceito as mulheres e os escravos, e sob tal aspecto era uma organização social que já se relacionava com o Direito, ainda que não o soubesse. A organização política mediada pela lei definia o próprio homem a ponto de Aristóteles fixar nela seu atributo distintivo quando disse: anthropos physei politikon zoon (O homem é um animal político).

A Filosofia e o Direito viveram ao longo da História uma sucessão de movimentos dialéticos de aproximação e repulsa, mas a conexão provou-se sempre necessária. Distanciados, o Direito sucumbe ao perigo de perder sua cientificidade transformando-se em mera técnica de aplicação de normas, alheia a qualquer componente ético.

Geovane de Assis Batista, juiz e filósofo, tem o mérito de, nesta sua obra, contribuir para uma nova aproximação das duas disciplinas. 

O Gastrópode proporciona ao leitor, afeito ou não ao mundo jurídico, um feliz encontro entre esses dois campos do conhecimento humano. Trata-se aqui não apenas de um diálogo epistemológico como aquele de que participamos quando dos estudos universitários. A presente obra recapitula, sob o olhar do juiz filósofo, conceitos que ao longo do tempo foram agregados à linguagem do Direito, tendo tomado fisionomias e significações próprias, mas que, no fundo, carecem da iluminação somente proporcionada pela Filosofia.

A obra se divide em três livros que abordam aspectos nucleares do direito processual do trabalho sob as perspectivas jurídica, filosófica e deontológica (legal, moral e religiosa). Inicia por discorrer sobre como as categorias da presentação e da representação estão intrinsecamente ligadas aos fenômenos jurídicos que emanam do mundo processual, abordando o Livro Primeiro o fenômeno sob a ótica jurídica e o Livro Segundo sob o ponto de vista filosófico.  Em seguida, no Livro Terceiro, a obra adentra profunda e importante discussão sobre a ética e os conceitos de Verdade e Justiça na idealidade de Platão bem como acerca da ética deontológica kantiana. Caminhando para seu final, no Livro Terceiro, Geovane trata com rara maestria temas palpitantes do mundo jurídico sob os perspectivismos legal, moral e filosófico.

O autor confere especial enfoque aos institutos da presentação e representação no Direito Processual Civil e no Direito Processual do Trabalho, buscando demonstrar onde e como estão presentes nas diversas relações que se estabelecem no processo, proporcionando ao leitor amplo cabedal de conhecimentos para bem distingui-los e aplicá-los. Num segundo momento da obra, temos as aproximações dos aludidos institutos jurídicos com os correspondentes fenômenos no âmbito da filosofia, começando e seguindo pela abordagem e análise do pensamento de grandes filósofos que, direta ou indiretamente, analisaram o objeto sob estudo.

Ler O Gastrópode nos remete, de alguma forma, ao Liceu de Atenas, onde o Estagirita e seus discípulos debatiam ao ar livre os mais diversos temas, enquanto deambulavam entre árvores e pedras, parando sob alguma sombra para aprofundar os assuntos que lhes eram mais caros. A cada capítulo nos deparamos com multiplicidade de questões acerca das quais o autor nos convida a refletir sob novas perspectivas.   

Possivelmente, muitos dos fenômenos jurídicos analisados em O Gastrópode — ao menos para os profissionais do direito e acadêmicos dos últimos anos da graduação — foram estudados ao longo da vida acadêmica ou profissional. Todavia, provavelmente sob uma ótica muito diferente daquela agora proporcionada nesta obra. É como se o autor nos emprestasse seus óculos de filósofo — por que não dizer os próprios olhos já que, etimologicamente, ambas as palavras se confundem (lat. ocŭlus, i 'olho) — para observarmos de sua posição privilegiada os fenômenos com os quais nos deparamos em nosso labor diuturno, mas quase sempre presos ao viés puramente jurídico.

Heráclito, o sábio de Éfeso, fez a seguinte constatação ao observar a realidade: “num rio não se entra duas vezes”. Primeiro, porque já não é o mesmo rio. As águas que um dia banharam Tales hoje estão no Atlântico ou talvez numa nuvem que passa sob o céu de Creta. Também Tales, dias depois, já não é o mesmo homem que se banhou naquelas águas. Para Heráclito, o movimento rege o cosmo, a vida pessoal e coletiva. Tudo flui (panta rei). Muito antes que Lulu Santos embalasse nossos ouvidos cantando que “tudo muda o tempo todo”, aquele homem inquieto corria as ruas de uma das importantes cidades de seu tempo, hoje ruínas na costa jônica, dizendo ao povo e ao próprio imperador, a quem conseguiu cativar, que nada é o que pensamos ser porque tudo está sempre fluindo, num ir e vir cíclico e infinito.

O Direito e suas implicações com os conceitos de verdade, mentira, erro de percepção, os atores do processo, o papel do juiz, tudo isso é revisitado com grande argúcia e profundidade pelo autor que abre aos seus leitores a possibilidade de uma nova perspectiva sobre todos esses assuntos não apenas porque os tempos mudaram ou porque o leitor de hoje já não é o estudante de ontem, mas também porque nos oferece o arcabouço teórico próprio do filósofo.

É relevante destacar que não se trata de uma obra dogmática, mas crítica. Os conceitos e fenômenos jurídicos são a todo momento postos à prova da lógica e da ética. A Verdade não é relativa, entretanto o caminho até encontrá-la não é único. O Gastrópode é também aberto aos valores da cultura, que, evidentemente, não se resumem à Filosofia. Nele há também espaço para a arte, religião e poesia. Num ou noutro capítulo — como num Liceu dos peripatéticos do século XXI —, podemos nos deparar, sem preconceito, com candentes discussões suscitadas por Santo Agostinho, Rousseau, Kant, Schopenhauer, Caetano Veloso, Jauperi e tantos outros mestres do saber ou das artes de todos os tempos.

Disse Wittgenstein, um dos filósofos da predileção do autor, que acerca daquilo de que não se pode falar, deve-se calar. Não menos certo é que sobre aquilo que se pode falar, não se deve calar. Para sorte de todos os leitores, o juiz filósofo Geovane de Assis Batista não se calou. Trata neste O Gastrópode de temas relevantes que estão pendentes de aprofundamento sob a perspectiva ética e filosófica e contribui assim para que a ciência jurídica continue a ser iluminada pela Filosofia. Boa leitura!

 

                                                                                                                    João Batista Sales Souza

Juiz da 3ª Vara do Trabalho de Itabuna (Bahia).